sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O paninho de prato 

A chinela arrastada no piso despertava a casa antes mesmo da cantoria no galinheiro começar. Ainda abraçados ao lençol, remela nos olhos, eu, irmãos e primos íamos visualizando na mente os acontecimentos do lado de fora do quarto a partir dos ruídos.

A água batendo no alumínio da pia. Tia Balia tá na cozinha.

A raspada do fósforo na caixinha. Vai ligar o fogão.

O remelexo de colher no pote. Tá molhando o fubá.

A tampa deitando amortecida na panela. Eita, é cuscuz no pano de prato.

A partir daí era o cheiro quem nos informava, não mais o som.

Enquanto contávamos telhas sobre as ripas, hotelaria eventual das patativas do agreste daquela São Caetano dos anos 80 e 90, o aroma tinha caminho livre para incensar o ambiente da casa sem laje.

Era melhor se levantar. Junto com os primeiros raios que surgiam sobre o plástico transparente improvisado que fazia vez de clarabóia.

Lava o rosto, escova os dentes e chega à mesa de assento fofinho junto com o cuscuz fumaçando sob o pano de prato.

O desembrulhar daquele paninho era um evento, um acontecimento, o ápice daquele filme que nos despertara. Era como se houvesse uma trilha, uma ópera ao fundo, enquanto lentamente Tia Balia desatava o nó, baixava uma ponta do pano por vez e enfim surgia o tesouro tão desejado, amarelo ouro dezoito quilates, e, por obra do pano, lisinho que nem testa de botox. 

Pra completar, era despejado o queijo de manteiga derretido, que se embrenhava pelas brechas possíveis do cuscuz de Tia Balia. Aquilo era felicidade.

Quando nova, Balia foi professora de beabá de uma rama de miúdos e de adultos iletrados da cidade; depois, dona de banca na feira da rua Prefeito Caetano Gomes. Alpercata de couro, qualquer tamanho, era com Tia Balia. A dona do olho mais azul esverdeado das margens do Rio Ipojuca, do riso agudo, e do cuscuz no paninho que décadas depois faz salivar só de pensar.

Tia Balia é mais um exemplo da genética longeva das mulheres dos Ramos, a banda materna de nossa família. Nesta madrugada de 18 de fevereiro de 2022, ela descansou. Seis dias antes de completar 105 anos de existência.

Obrigado, Tia, por mais de século de amor e pelo cuscuz no paninho de prato.

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Gasping

Em 2019 eu aprendi essa palavra. Estava num quarto de hospital quando a médica observou mainha e disse que ela ainda não havia entrado em gasping.

“O que é isso?”

“Quando começam as respirações finais.”

Já sabíamos que não haveria tratamento capaz de curá-la, nem de prolongar sua vida após nove meses de um diagnóstico que fez abrir um abismo sob os nossos pés. 

Dona Alda, fortaleza desde sempre, ainda mais na arte de preservar os filhos, desde o finzinho de 2018 tentava tocar a rotina e as ‘novidades’. Festejava a reunião de tanta gente em seu entorno. 

Assim, juntos, vivemos diagnóstico, cirurgia, UTI, recuperação, volta pra casa, o cotidiano de novas limitações, o tratamento e suas implicações, a eterna esperança, a serenidade, a volta de sintomas, da doença, sua partida. 

Domingo, 15 de setembro, às 14h35. Gasping

Até essa data, fomos apresentados a outros termos de um doloroso vocabulário: adenocarcinoma, infusor, prognóstico reservado, ciclo...

Duplamente. 

Porque painho, nesses inexplicáveis acontecimentos, foi diagnosticado com o mesmo tumor, em estágio ainda mais avançado.

Domingo, 27 de outubro, às 3h. 
Gasping.

Quarenta e dois dias entre um e outro. 
E outras tantas repetições nos rituais de despedida. Dor sobre dor  sobre dor...

Dois mil e dezenove. Como esquecê-lo? O mais triste. O mais doído dos anos. 

Não quero guardá-lo com rancor. Porque, ao mesmo tempo em que eu e meus irmãos sofremos as maiores perdas de nossas vidas, chegamos até aqui, no fim do ano, ainda com equilíbrio, por incontáveis demonstrações de afeto, de parentes, amigos, colegas de trabalho, até de desconhecidos. Mãos, braços e abraços estendidos. Que enxugaram nossas lágrimas, que nos puseram no colo, que nos deixaram de pé. 

Espero que chegue logo aquele dia que todos falam em que só ficarão as boas lembranças. As que vão acarinhar a saudade do peito e fazer olhar pra frente com o amor e a doçura de Alda, a leveza e o otimismo de Ivo.

Mainha e painho, vocês não ficam em 2019. Vocês seguirão com a gente por todos os dias que virão até o último suspiro, nosso gasping, seja lá quando for.

Com profundo amor, teu caçula.

sábado, 14 de setembro de 2019

O travesseiro branco

Istambul, 5 de maio de 2013.

O travesseiro branco

A palavra ‘encardido’ aprendi com Dedei. 
Ora, claro, coisa mais óbvia, só ela poderia, obsessiva por limpeza, ensinar a um menino com menos de dois anos de idade que algo estava ‘encardido’.
E lá estava a tal palavra adicionada ao meu micro-dicionário infantil, que continha, entre outras coisas, os verbetes: Mainha, Painho, Riquinho, Ivinho, fatia parida e encardido. Mérito de Dedei.
Além dessa palavra, Dedei me deu outras coisas. E não falo de meias ou cuecas. 
Nem falo do pano que cobre o bebedouro lá de casa, em bordado branco - nada encardido - onde, em cada gole, sem perceber, bebo um pouco Dedei.
Ela me deu amor. Assumiu com gosto a missão dada por Alda e Ivo de ser minha madrinha. Por trinta e seis anos, aquele par de olhos claros sempre, sempre, sempre me encarou com ternura.  
Olhos, aliás, míopes. Os óculos ajudaram Dedei a lidar com linhas e agulhas. 
Sabendo disso, resolvemos pregar uma peça. Em um tal abril de mil novecentos e oitenta e algo, eu e meus irmãos gritamos por Dedei. ‘Vem aqui que Ivinho tá com algo no pé!’. Ela veio, preocupada. Procurou, procurou, procurou de novo. Nada. ‘Não tá vendo, Dedei?’, ‘Não’, ‘Então, vai pegar os óculos’. E lá foi Francisca. Voltou e deu de cara com: nada. Foi quando, ao mesmo tempo, o trio desocupado de Alda gritou: ‘Primeiro de abril!’. 
‘Ah, miseráveis!!!’ 
Pois bem. A voz dela tá aqui no meu ouvido agora. A risada, sempre iniciada com um A, forte, acentuado, vem com frequência nesses dias em que a distância me impediu de dar um adeus.
E, de longe, reparei numa coisa. A manchete do Jornal do Commercio do dia 30 de abril foi ‘Sufoco e Alívio’. O jornal se referia à chuva que caiu no Estado deixando um sufoco no trânsito e trazendo alívio por amenizar a seca.
Pensando bem, essa aí também poderia ser a manchete de nossas vidas naquele mesmo dia de chuva forte: ‘Sufoco e Alívio’. Em nós, aquela sensação de vazio e impotência, da dor sem remédio. O sufoco da perda. E, ao mesmo tempo, sem pedir licença às lágrimas, o alívio pousou em nós. Aliviados por ver o fim do sofrimento.
Sei que, em breve, apenas as boas lembranças vão permanecer.
Buscarei por elas obsessivamente como Dedei buscaria um grão de areia no chão da sala.
Lembranças como o cheiro do travesseiro branco, levemente encardido, que ficava na cama da parede do quarto à esquerda da casa de número setenta e seis da Avenida Recife. Era a cama onde eu ganhava cafuné, massagem na mão e soneca de conchinha. 

Era a cama de Dedei.

sábado, 15 de setembro de 2018

A séria Graça

O título acima foi o mesmo que dei num dos primeiros trabalhos do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco. O professor pediu para os alunos do segundo período fazerem um perfil – um tipo de narrativa jornalística que retrata pessoas. Ousado, escolhi uma apresentadora de TV que fazia muito sucesso. O ano era 1995. Eu era um aprendiz de qualquer coisa. E ela já era Graça Araújo. 
 Na lista telefônica, achei o número da TV Jornal. Expus o pedido à produção: Oi, quero fazer uma entrevista com a jornalista para um trabalho de universidade e tralalá.
Pela naturalidade do interlocutor do lado de lá da linha esse tipo de pedido era habitual. E, assim como a maioria, a resposta para mim foi positiva. Graça Araújo ia me receber! 
O título que escolhi para o perfil - e para esse texto aqui 23 anos depois - foi pobre, um caco com o nome da apresentadora (não duvido que na época deva ter achado superinteligente). Mas, no fundo, tinha lá seu sentido. Graça, sobre o ofício, era exigente, séria. Antes de ser com os que trabalhavam ao seu lado, era consigo mesma. E isso ficou registrado na lembrança juvenil daquele estudante. 
- Eu tinha tudo para dar errado. Mulher, órfã, preta, pobre, nordestina.
A frase dita, gravada, abriu meu texto. Era uma soma que dava, para Graça, um único resultado: ela não podia falhar. A auto exigência fez da jornalista referência em todas as posições: no estúdio de TV ou de rádio, lendo teleprompter, no improviso, na entrevista. Ah, as entrevistas de Graça. 
Políticos, então, não saíam ilesos. Sem perder a elegância jamais, a entrevistadora os desnudava. Lembro-me uma em que o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso não gostou quando Graça o interrompeu para corrigi-lo durante uma resposta.
FHC saiu-se com essa: “Vá me desculpando, mas presidente é presidente”. A frase até entrou para as vinhetas históricas da Rádio Jornal. 
Para quem não teve o prazer de assisti-la ou ouvi-la, a definição do colega Gil Luiz Mendes dá uma parte da dimensão de Graça Araújo para o jornalismo: “Graça é a nossa mistura de Oprah Winfrey com Fátima Bernardes. É unanimidade.” 
Por ser quem era - pela origem e pela obstinação na formação e na conduta, somados ao carisma inato - Graça dialogava sem filtros com a população, principalmente a parte mais pobre. Especialmente com as mulheres. Quantas e tantas não foram as opiniões marcantes contra o feminicídio, o racismo, os direitos violados. 
Trabalhei com Graça por poucos meses. E, mesmo em canais diferentes, quando a encontrava, sempre tive a generosidade como resposta, assim como foi na primeira vez, quando o estudante lá em 1995 entrevistou a jornalista já consagrada. 
Festeira com a vida, séria com a profissão, indignada com as injustiças. Graça, querida, você tinha tudo era pra dar certo. E deu.

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A apresentadora Graça Araújo morreu no Recife, no dia 8 de setembro de 2018, vítima de um AVC, aos 62 anos.

terça-feira, 14 de março de 2017

Meritocracia

Conheci Renato na Desembargador João Batista, no Bongi, onde ‘nasci’ e cresci.  Renato era da Mustardinha. Apenas o muro da Celpe, a companhia elétrica de Pernambuco, separava os bairros.


No Bongi era tudo asfaltado, casas boas, grandes, vizinhos ‘bem de vida’; juízes, advogados, engenheiros, comerciantes, funcionários públicos – como meus pais. Na Mustardinha, ruelas de terra, esgoto sem tratamento, casas simples, muito lixo, som alto, menino e cachorro de tuia nas ruas.


Eu, Ivinho e Riquinho, meus irmãos, cruzávamos essa ‘fronteira’ com frequência pra comprar bombom na venda de Seu Lourenço ou ir com mainha na missa do Padre Jaime. Andar de bicicleta pela Mustardinha também era fascinante, um mundo diferente do nosso e bem ali do lado.


A Desembargador Batista era o local das peladas da vizinhança. Duas chinelas paralelas de cada lado, ou pedras mesmo, e a bola rolava. Renato vinha da Mustardinha com o irmão gêmeo jogar com a gente.


Nós tínhamos mais ou menos a mesma idade. Por anos e anos a gente se encontrou e se enfrentou ali, nas tardes do Bongi. Eu quase sempre perdi. Mas, com o tempo, ele passou a aparecer menos. Até que deixou de ir.


Eu segui a vida; Mater Amabilis, Salesiano, São João, Marista, os colégios privados – e católicos – de minha carreira escolar. Professor particular, quando era necessário, cursos de idiomas, cursinho pré-vestibular... tive tudo à disposição. Aproveitei.


Passei. Jornalismo. Na Federal! Mas também poderia ter cursado administração na Faculdade Estadual de Pernambuco ou ter feito comunicação na Católica – meus pais podiam pagar. Mas preferi ser o primeiro jornalista da família... de graça. (A razão da escolha do curso até já contei aqui no GraViola em Por que Escolhi Jornalismo).


Cabeça raspada, orgulho da família.


O tempo passa. Já repórter de televisão, nossa equipe da Globo Nordeste é informada pela chefia de reportagem que deve seguir para o bairro de Tejipió. Pauta sobre a prisão de uma quadrilha de assaltantes na Delegacia de Capturas.


Uns seis jovens, a maioria sem camisa, encostados na parede da sala do delegado. Todos negros. De cabeça baixa. O agente ordena levantarem o pescoço.


- Hora de ficar famoso, cambada!


No canto direito, mais perto da porta, um rosto familiar.


Pera lá. Eu conheço aquele cara ali.


Caralho, Renato.


Meu companheiro de pelada da infância, ali, já ‘de maior’, era um dos integrantes do grupo que praticava toda sorte de assaltos no Recife. Renato logo abaixou a cabeça. Mas já estava devidamente registrado pelos fotógrafos e cinegrafistas. Não cruzamos os olhares. Nem sei se ele me notou; ou se até me reconheceria. Afinal, havia muitos anos que a gente se enfrentara nos duelos de barrinha da Desembargador João Batista.


Aquilo ficou na retina e na memória por muito tempo. Não sei onde está Renato, o que se deu depois de ir para o Presídio. Se engrossou a estatística dos 42% dos presos brasileiros provisórios que passam anos sem julgamento. Sendo que mais da metade deles, quando julgados, recebem pena menor do que o tempo que já passaram na prisão.


Nem sei se ele ainda está vivo.


Sei apenas que Renato e os comparsas não tiveram ordem especial da Justiça para preservar seus nomes em tarja preta. Sei também que, depois da parceria na pelada quando meninos, voltamos a estar juntos, adultos, na mesma reportagem de tevê.


Eu, o repórter. Ele, o 'bandido'.

sexta-feira, 29 de julho de 2016

Quando um ‘Oxente’ me ajudou a falar com Pelé

Eu já havia entrevistado Pelé.

A primeira vez foi num sábado, 30 de abril de 2011. Pelé tinha ido ao Recife receber uma homenagem do festival de cinema de Pernambuco, o Cine PE. Poucos sabiam – e ainda sabem – que o Rei do Futebol participou como ator de 18 filmes, vários sem nenhuma relação com o futebol.

Se eu já estava ansioso para encontrá-lo, Pelé contribuiu ainda mais para isso. A nossa equipe tomou um chá de cadeira de duas horas e tanto no mezanino no hotel onde Pelé estava hospedado, na praia de Boa Viagem.

Vacilo mútuo das produções do festival e do ex-jogador em agendar a entrevista para às 4 da tarde daquele sábado. Mesmíssimo horário da semifinal do Campeonato Paulista entre Santos e São Paulo.

Lógico que o Rei só foi nos atender após assistir ao baile de Neymar e Ganso sobre o tricolor que garantiu o Santos na final do Paulistão 2011.  Parte do papo com o ‘ator’ Pelé está nesta reportagem que fizemos para o Jornal Nacional (https://globoplay.globo.com/v/1503109/).



Mas quero aqui contar sobre quando entrevistei Pelé pela segunda vez.

Era março de 2014. Tinha ido com os jornalistas Rafael Pirrho e Rodrigo Lisbôa fazer uma série de reportagens em dois países africanos que iam disputar a Copa do Mundo no Brasil: Camarões e Argélia.

A Argélia foi nosso primeiro destino. Na quarta-feira, dia 5, à tarde, fomos cobrir o amistoso entre a seleção argelina e a Eslovênia. Sabíamos que Pelé daria o ponta-pé inicial, mas não tínhamos nenhuma confirmação de que poderíamos ou conseguiríamos entrevistá-lo.  

Deixamos pra trás a capital Argel, dando de costas para o Mar Mediterrâneo, e partimos ao Sul em direção à cidade de Blida, local do jogo. Cinquenta minutos depois, estávamos no estádio Mustapha Tchaker.

Difícil enumerar as impressões marcantes daquele dia: um estádio tomado por homens – apenas poucas mulheres, casadas, frequentam lugares públicos na Argélia, herança da tradição muçulmana no país; torcedores deixando a arquibancada durante o jogo para rezar em direção a Meca; e a veneração a um senhor brasileiro, ali com 74 anos.

Já havia visto, ouvido, lido reportagens sobre a dimensão da imagem de Pelé fora do Brasil. Mas testemunhar o fanatismo de dezenas de milhares de argelinos, quase a totalidade nunca viu Pelé jogar, foi uma experiência impactante.

A missão do dia – e obrigação de repórter - era ouvir Pelé sobre a recepção dos argelinos.

Só que havia dezenas de repórteres ao nosso lado, e outra incontável quantidade de seguranças. Depois que Pelé deu o ponta-pé, veio caminhando para fora do gramado. Eu era mais um na pequena multidão que tentaria ouvir o Rei do Futebol. Isso se ele falasse. Se ele parasse.

- Pelê, Pelé, Pe-lé...

Se todos o chamavam do mesmo jeito, apenas com variações de idiomas, e o barulho da arquibancada seguia, como eu poderia chamar atenção?

Lembrei-me ali de um outro episódio. Madri, 2007. Eu estava na Cidade Deportiva, o CT do Real Madrid. A porta de saída do prédio para o estacionamento funciona em alguns dias como zona mista e os repórteres tentam ali tirar algumas palavras dos jogadores. A grande maioria nem para. E assim foi com Beckham, Robben, Higuaín, Ronaldo, Roberto Carlos, Cannavaro. Passando e deixando microfones no vácuo. Eu não estava ali esperando pelos galácticos. Claro, seria ótimo se eles parassem. Mas a minha pauta era para uma série do Esporte Espetacular sobre os nordestinos no futebol europeu. Eu estava ali para ouvir Pepe, um alagoano que havia chegado há poucos meses no clube espanhol.

Pensei: como não ser ignorado e fazer Pepe ao menos olhar para mim.

Matutei.

Pronto.

Eu vou chamá-lo de um jeito diferente do qual fariam os outros jornalistas.

- Pepe, Pepe, Pepe, Pepe...

Repórteres em uníssono. Ele baixou a cabeça, apressou o passo. Ia se bandear para o estacionamento. Foi quando eu mandei dando uma tonelada de peso ao meu sotaque nordestino:

- Benedito Bentes! Olha o cabra de Benedito Bentes!

Parou. Virou o pescoço noventa graus à esquerda. Deve ter pensado: quem é o maluco que tá gritando o nome do bairro onde eu nasci, em Maceió?

Eu! Já estava com os dois braços levantados.

Abriu o sorriso. E veio perto na grande em nossa direção. Ali, me apresentei e pude marcar, cara a cara, a longa entrevista que faria com zagueiro no dia seguinte. Pepe naquela época não tinha assessor de imprensa no Brasil, em Portugal, e nem na Espanha. E se dependesse da assessoria do clube, ele só falaria em entrevista coletiva, dali a algumas semanas.

Usei estratégia semelhante agora em janeiro de 2016. Em frente ao hotel oficial do Bola de Ouro da FIFA, em Zurique, na Suíça, havia algumas dúzias torcedores. Quando Kaká, que ia entregar o Troféu ao vencedor, chegou, os berros foram a altíssimos decibéis. Me embrenhei entre os torcedores eufóricos e gritei:

- João Ramalho! João Ramalho! Uma palavrinha a pedido de João Ramalho!

Kaká identificou o nome familiar em meio aos gritos e olhou em minha direção, microfone na mão. Gargalhou e me atendeu.

João Ramalho é há anos produtor da seleção brasileira pela TV Globo e criou intimidade com vários atletas, entre eles, e especialmente, Kaká.

Após os parênteses em Madrid e Zurique, voltamos para Argel, naquela quarta-feira de 2014.

- Pelê, Pelé, Pe-lé...

Todos chamavam, junto com frases em árabe. Os seguranças, a passos apressados, o cercavam.

Abri a goela mais alto que os árabes.

- Oxente! Brasil! Amigo! Aqui! Por favor! Eu!

Pelé parou. Não acreditei.

- Claro que você fala com a gente, Rei!

Esticou a mão ‘furando’ o cordão de braços dos seguranças.

Puta que pariu! Deu certo!

Duas, três perguntas. Respostas sorridentes, um tapinha no ombro. E Pelé seguiu são e seguro para a Tribuna de Honra.

E eu voltei pro meu canto, feliz de orelha a orelha, sendo eternamente grato ao meu ‘oxente’.


segunda-feira, 20 de junho de 2016

Um país sem gelo

Em Paris, dezoito horas. 

Dezoito e nove, pra ser chato. Foi quando o Boeing 777-300 taxiou e levantou voo no Aeroporto Charles de Gaulle. Era tardinha, mas, do alto, foi possível testemunhar umas das imagens mais exuberantes do mundo: as luzes de Paris. Voilà. 

Aquilo ficou na retina enquanto o Air France ‘descia’ pelo mapa da Europa, cruzava o Saara e rumava ao oeste do continente africano. Pouco menos de seis horas depois, o comandante anunciou que iríamos pousar. Eu estava na janela, mas não conseguia enxergar absolutamente nada do nosso destino. E não era minha miopia dando sinais de piora.

Às 23h35, hora local, pousamos em Douala. 

Um desembarque sem finger, nem ônibus. Caminhamos na pista em direção a um prédio amarelo, de dois ou três andares, e alguns lances de escada acima. Me lembrei do Recife. O Recife dos Anos 80. Da rodoviária no cais. Um caos. 

A escuridão na pista e o terminal antigo e simplório não eram todo cartão de visitas. Assim que passamos pela alfândega, nos deparamos com uma face crua e nua do país onde passaríamos os próximos nove dias.

Dezenas de pessoas disputando quem levava nossas bagagens. No susto, preferimos carregá-las nós mesmos. Logo atrás, um som incomum, que se espalhava tipo traque de massa ao tocar o chão. Eram chicotadas. Para afastar dois rapazes que tentavam carregar malas de outro passageiro, o policial camaronês se valeu de um chicote. Bem-vindos.

O som seguiu ecoando nos ouvidos enquanto seguíamos para o hotel. Aquilo que eu não via do alto no avião durante a aterrissagem, pouco consegui enxergar de baixo também. No caminho de alguns minutos, a noite na maior cidade de Camarões era uma penumbra só. Raros postes com fracas lâmpadas amarelas. Descobriríamos assim que aquela era cena comum. Camarões vive em permanente racionamento. Não há uma hidrelétrica no país. A pouca energia vem da vizinha Nigéria.

Os jogos do campeonato camaronês de futebol, por exemplo, são diurnos. Em vários estádios não há nem refletores.

A carência de energia se escancara na hora de matar a sede. Geladeiras e freezers apenas conservam. A tensão elétrica baixa consegue somente esfriar as bebidas. Whisky? Só cowboy. 

Estávamos num país sem gelo.

De Paris para Douala, da luz à escuridão: 6 horas. A distância entre colônia e metrópole. E Camarões teve muitas. Além da França, Grã-Bretanha, Portugal e Alemanha tiveram seu momento de controle e exploração, principalmente do petróleo e do calcário. Após a Primeira Guerra, franceses - na maior parte do território - e britânicos dividiriam o país. A independência de direito tem pouco mais de 50 anos. A independência de fato ainda é ilusão.

Ficou de herança uma nação pré-industrial. Alguma pecuária e muita agricultura. De Douala a Yaoundé, a capital - onde fomos entrevistar Roger Millá, o Pelé camaronês - mercados de frutas se multiplicam ao longo dos 240 quilômetros. Melancia, abacaxi, banana, cogumelo, cana de açúcar dividiam espaço com carne de roedores, galinha e até morcegos expostos na beira da estrada. 

Os dias em Camarões foram de testemunho da precariedade permanente. Era como visitar o sertão nordestino de trinta anos atrás. Piorado. Tá lá no IDH, da ONU: posição 153 no ranking de Desenvolvimento Humano. Expectativa de vida: 53 anos.

Seria cômodo e preguiçoso levar de lá apenas essa radiografia de um país e definir um continente a partir dela. Mas o produtor e amigo Rafael Pirrho, que já foi correspondente na África do Sul, nos alertou a mim e ao repórter cinematográfico Rodrigo Lisboa antes mesmo de irmos gravar histórias em países africanos que disputariam a Copa do Mundo no Brasil:

- Cuidado com a única história.

Foi como se as palavras nos pusessem olhos de peixe sobre a córnea. África não é UM país. São cinquenta e quatro. Sim, há pobreza na maioria. Sim, há lindas paisagens, há os safáris e seus animais selvagens. Mas há uma diversidade proporcional aos trinta milhões de quilômetros quadrados do continente

Onde cabem desde democracias plenas a ditaduras absolutistas, de nações cristãs a muçulmanas. E, não se surpreenda de passar dez dias em um país e não ver um negro sequer. Foi o que aconteceu conosco na Argélia, por exemplo. 

Correr do estereótipo, ou da 'história definitiva', como sugere a romancista nigeriana Chimamanda Adichie, não significa também cegar a uma realidade objetiva. Ao ocidente não cabe se interessar pela África apenas quando surgem notícias de que uma ¨epidemia pode se espalhar pelo mundo¨. 

A tão atual questão dos refugiados, por exemplo. Mais de 500 mil africanos tentaram se refugiar na Europa, em 2015, segundo as Nações Unidas. O que milhares encontraram? Fronteiras bloqueadas e dirigentes 'lavando as mãos'. 

Alto lá. Nesse caso, cabe o reducionismo da culpa. É que olhando pra trás, folheando a história, só é possível chegar a uma conclusão: os antigos colonizadores tem que pagar essa conta. A começar pela de luz.