quarta-feira, 27 de agosto de 2014

O Assovio

Era uma quinta-feira.

Eu não tinha nem dois meses de Rio de Janeiro. No relógio, batiam duas da tarde do dia 31 de maio de 2012. Já com a pauta na mão, sou interrompido no corredor pelo chefe de reportagem. Mudança de planos: no lugar do treino do Botafogo, eu deveria ir para a sede da Confederação Brasileira de Futebol, na Barra da Tijuca.

A advogada de Ronaldinho Gaúcho, Gislaine Nunes, acabava de protocolar na CBF o pedido de rescisão contratual com o Flamengo. R10 cobrava o pagamento de salários atrasados, recolhimento do Fundo de Garantia, entre outros débitos. Uma conta de 40 milhões de reais. Liminar concedida pela Justiça do Trabalho carioca. Ronaldinho tava de saída.
Nossa equipe só tinha um número de telefone e a pressa.
Liguei para doutora:
- Olá, Dona Gislaine, sou André Gallindo.
- Quem?
- André Gallindo, repórter do Globo Esporte aqui no Rio de Janeiro. E estou querendo confirmar uma informação.
- Meu querido, estou ocupada agora, me ligue em dez minutos.
Na cara. Não deu tempo nem pro até logo.
Seguimos com a Zona Oeste na rota: Jardim Botânico, Gávea, Rocinha...
Opa, dez minutos.
- Olá, Dona Gislaine. Eu liguei agora há pouco.
- Quem é?
- Sou André...
Reapresentação interrompida.
- Certo, pode dizer.
- Quero confirmar se a senhora protocolou mesmo o pedido de rescisão na CBF e desejo gravar uma entrevista com a senhora.
- Sim, mas agora não dá pra falar porque estou indo para o Aeroporto Santos Dumont, vou voltar para São Paulo.
Despiste.
- Mas a senhora não está na sede da CBF?
Pausa no outro lado da linha.
- Peço que o senhor ligue novamente em 10 minutos.
Sem chance para tréplica.
A dúvida e o engarrafamento foram companheiros de espera. Não demos meia volta. São Conrado, Elevado, Barra...
Dez minutos britânicos depois.
- Olá, Dona Gislaine.
- Quem é?
- Sou eu, André, liguei duas vezes agora há pouco. Quero gravar com a senhora sobre o caso Ronaldinho.
- É o seguinte, vou entrar em reunião com o meu cliente agora e...
Antes que ela pedisse para eu ligar dali a dez minutos, aproveitei a deixa:
- Pois, então, faça-me um favor. Pergunte se o seu cliente topa falar sobre o que aconteceu porque está todo mundo o acusando disso e daquilo e essa é uma chance que ele tem de se defender.
Silêncio.
- Me ligue em dez minutos.
Nos abraçamos à mínima chance. Antônio Paiva sentou o pé e rumamos para a casa do cliente famoso. Demos plantão na portaria do condomínio de luxo na Barra da Tijuca.
Mais uma ligação no tempo pedido.
- Alô.
Dessa vez, voz de homem do lado de lá.
- Alô, é o telefone de Dona Gislaine?
- Sim, quem é?
- Aqui é André Gallindo.
- Quem?
- André e tralalálálálá.
Repeti apresentações e argumentos.
O assistente de Gislaine disse que ela e o cliente estavam avaliando se haveria entrevista.
Em mais um punhado de minutos, o meu telefone toca.
- André, um carro está indo aí lhe buscar.
Entramos. Ruas de mansões adentro, paramos diante de uma casa de grama bem aparada, pé direito alto e parede branca. Passamos por um segurança, cruzamos uma porta de três por três até uma sala com mesa de jantar tamanho-engenho.
Advogada, prazer, André.
Lá no fundo, em outra sala, apenas a tela de um note book ilumina o rosto do cliente. Cumprimento Ronaldinho de longe. Oi. Opa.
Assis, irmão e empresário, chega. Reexplico o que havia dito pelo telefone. Fechado. Digo apenas que temos pressa. O tempo para enviar a reportagem era mínimo.
A Lei de Murphy entra em cena.
O operador procura um ponto de energia para ligar a iluminação. A lâmpada não acende.
Assis se diverte com a situação.
- Que lâmpada é essa? Nunca a energia falhou nas nossas festas.
Novo cenário escolhido. Uma sala aos fundos, cuja parede lateral é coberta por um armário, repleto de instrumentos musicais: tantan, pandeiro, surdo, tamborim. Uma mini bateria de escola de samba poderia ensaiar ali.
Édson Magalhães acerta o ângulo. Podemos começar.
Só falta o entrevistado.
Assis assovia.
Os irmãos se entendem pelo código.
Ronaldinho chega saltando o sofá. Posicionado.
Só que antes do play-rec, novidade de última hora:
- Uma pergunta apenas.
Assis determina.
Finjo que não entendo. Faço seis. Mesmo econômico R10 responde a todas. Pouco mais de cinco minutos depois, tento a sétima...
- Mas, Ronaldinho, por que você não avisou à diretoria que não iria para o amistoso no Piau...
Outro assovio.
Ronaldinho olha para Assis. Papo encerrado.
Dali a uma hora e meia, o Jornal Nacional exibiria a reportagem abaixo.
Um título carioca, 74 jogos e 28 gols depois, R10 se despedia do rubro-negro via tribunal e, publicamente, via JN. 
A história mostraria que não era o fim da carreira. Ronaldinho e o Atlético Mineiro se uniriam numa parceria vitoriosa.
O Palmeiras pretendia ser o novo destino do jogador. R10 seria anunciado no aniversário de 100 anos do clube paulista.
O negócio não foi fechado por pouco.
Faltou um assovio.

sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Poltrona 25d

Domingo, 24 de agosto de 2014, já tem mais de 24 horas. Ele é vivido há dias pelo camisa 18 do Fluminense.
- Tô ansioso.
- Por quê?
Pergunta imediata do repórter e colega de voo a 9 quilômetros do solo entre Chapecó e Campinas.
- Eu poderia nesse jogo estar do lado de lá.

Nos primeiros dias de 2014, surgiu uma queda de braço improvável. Fluminense e Sport renderam manchetes pelo mesmo interesse: a sensação do campeonato brasileiro do ano anterior. Walter, o 'gordinho' do Goiás, o atacante dos 13 gols, das 9 assistências, da Bola de Prata, do Trofeu Armando Nogueira, da Seleção do Campeonato da CBF...

Até hoje, se pensava que os cifrões a mais oferecidos pela Unimed de Celso Barros foram decisivos. Mas quarenta minutos de voo trouxeram à tona um fato que pesou para que o alvo da disputa ignorasse o coração e escolhesse o Fluminense.

Walter é filho do Coque, comunidade pobre e violenta do Recife. O campo de pelada do bairro oferece como paisagem o estádio da Ilha do Retiro. Torcedor do Sport, Walter repetia para os amigos de pelada que eles ainda o veriam ¨ali dentro¨.

A promessa só não se cumpriu, em janeiro, porque uma última ligação vinda do Rio o fez mudar de ideia.

- Eu sou doente, doente pelo Sport. Eu ficava andando de um lado pro outro dentro de casa. Todo mundo me ligava, os amigos, os parentes. Pediam para eu aceitar a proposta do Sport. (Gustavo) Dubeux (dirigente do time pernambucano) falava: 'rapaz, tu vai chegar num carro dos Bombeiros, vai ser ídolo na tua terra'. Eu tava com os dois contratos na mesa. Meu empresário me disse: 'Walter, agora é contigo. Tua indecisão vai me endoidar'. Aí, rasguei o do Fluminense.

Nessa hora, os companheiros de time, Biro Biro, Diego Cavalieri e Édson, também já davam audiência ao relato do atacante.

- Eu assinei o do Sport. Mas, aí, alguém (não lembra o nome) do Fluminense me ligou e me convenceu. Rasguei o do Sport e mandei meu empresário pegar outro do Fluminense.

- E o que ele disse pra você mudar de ideia?

Perguntei da poltrona 25d ao passageiro que narrava empolgado a história em pé, no corredor do avião da Azul.

- Ele falou: 'olha, você tem filha, a educação no Rio é muito melhor que a das escolas do Recife, pensa nisso'.

Factível ou não, o interlocutor havia acertado em cheio no argumento.

- Eu tenho 25 anos, falo todo errado porque não estudei. Eu não posso mais pensar só em mim, tenho que pensar na minha filha.

Educação virou obsessão pra quem frequentou a escola até a sexta série e colecionou incontáveis reprovações. Quando Catarina crescer, vai saber que o pai foi expulso do colégio logo no primeiro dia de aula por morder a professora.

Fluminense e Sport se enfrentam às 16h do domingo, no Maracanã. Walter estará um pouco dos dois lados.