No Bongi era tudo asfaltado, casas boas, grandes, vizinhos
‘bem de vida’; juízes, advogados, engenheiros, comerciantes, funcionários
públicos – como meus pais. Na Mustardinha, ruelas de terra, esgoto sem tratamento, casas
simples, muito lixo, som alto, menino e cachorro de tuia nas ruas.
Eu, Ivinho e Riquinho, meus irmãos, cruzávamos essa
‘fronteira’ com frequência pra comprar bombom na venda de Seu Lourenço ou ir com
mainha na missa do Padre Jaime. Andar de bicicleta pela Mustardinha também era
fascinante, um mundo diferente do
nosso e bem ali do lado.
A Desembargador Batista era o local das peladas da
vizinhança. Duas chinelas paralelas de cada lado, ou pedras mesmo, e a bola
rolava. Renato vinha da Mustardinha com o irmão gêmeo jogar com a gente.
Nós tínhamos mais ou menos a mesma idade. Por anos e anos a
gente se encontrou e se enfrentou ali, nas tardes do Bongi. Eu quase sempre perdi. Mas,
com o tempo, ele passou a aparecer menos. Até que deixou de ir.
Eu segui a vida; Mater Amabilis, Salesiano, São João,
Marista, os colégios privados – e católicos – de minha carreira escolar. Professor
particular, quando era necessário, cursos de idiomas, cursinho
pré-vestibular... tive tudo à disposição. Aproveitei.
Passei. Jornalismo. Na Federal! Mas também poderia ter
cursado administração na Faculdade Estadual de Pernambuco ou ter feito comunicação
na Católica – meus pais podiam pagar. Mas preferi ser o primeiro jornalista da
família... de graça. (A razão da escolha do curso até já contei aqui no GraViola em Por que Escolhi Jornalismo).
Cabeça raspada, orgulho da família.
O tempo passa. Já repórter de televisão, nossa equipe da
Globo Nordeste é informada pela chefia de reportagem que deve seguir para o
bairro de Tejipió. Pauta sobre a prisão de uma quadrilha de assaltantes na
Delegacia de Capturas.
Uns seis jovens, a maioria sem camisa, encostados na parede
da sala do delegado. Todos negros. De cabeça baixa. O agente ordena levantarem
o pescoço.
- Hora de ficar famoso, cambada!
No canto direito, mais perto da porta, um rosto familiar.
Pera lá. Eu conheço aquele cara ali.
Caralho, Renato.
Meu companheiro de pelada da infância, ali, já ‘de maior’, era
um dos integrantes do grupo que praticava toda sorte de assaltos no Recife. Renato logo
abaixou a cabeça. Mas já estava devidamente registrado pelos fotógrafos e
cinegrafistas. Não cruzamos os olhares. Nem sei se ele me notou; ou se até me
reconheceria. Afinal, havia muitos anos que a gente se enfrentara nos duelos de
barrinha da Desembargador João
Batista.
Aquilo ficou na retina e na memória por muito tempo. Não sei
onde está Renato, o que se deu depois de ir para o Presídio. Se engrossou a estatística
dos 42% dos presos brasileiros provisórios que passam anos sem julgamento.
Sendo que mais da metade deles, quando julgados, recebem pena menor do que o
tempo que já passaram na prisão.
Nem sei se ele ainda está vivo.
Sei apenas que Renato e os comparsas não tiveram ordem
especial da Justiça para preservar seus nomes em tarja preta. Sei também que,
depois da parceria na pelada quando meninos, voltamos a estar juntos, adultos, na
mesma reportagem de tevê.
Eu, o repórter. Ele, o 'bandido'.