sábado, 25 de abril de 2015

O clube não deveria se chamar Recife?

O relógio marcava meio-dia.
- O clube não deveria se chamar Recife?
A pergunta me surpreendeu duplamente. Pela indagação em si, algo que na prática eu nunca havia pensado, e pelo autor do questionamento, o goleiro Magrão.
Nós estávamos a poucas horas de estrear na Libertadores da América. Eu como jornalista, ele como dono da camisa 1 do Sport. O goleiro era nosso convidado a participar ao vivo do Globo Esporte. Uma operação arriscada porque dependia do bom humor da conexão da internet do Hotel Intercontinental, em Santiago, no Chile.
Mas tudo funcionou no cenário montado pela nossa equipe, o quarto 701. Através de uma webcam, via Skype, o goleiro falou sobre o entusiasmo em disputar a competição sul-americana e a emoção provocada pela recepção da torcida leonina no desembarque do time no Aeroporto Arturo Merino Benítez.
Minutos antes das minhas perguntas, Magrão mandou a dele:
- O clube não deveria se chamar Recife? Porque é Sport Club do Recife, então, seria Recife. Como Sociedade Esportiva Palmeiras virou Palmeiras.
Não deu tempo de pensar, nem de responder. Entramos ao vivo, Magrão voltou ao restaurante para almoçar com a delegação e, após a palestra do técnico Nelsinho Baptista, ao cair da tarde na capital chilena, enfrentou um saguão abarrotado de torcedores que se aglomeravam também diante do hotel na Avenida Vitacura.
O entusiasmo da torcida se justificava pela longa ausência na competição continental. Em 2009, o Sport completava 21 anos da primeira participação na Libertadores, disputada em 1988, após o título brasileiro do ano anterior. Dois mil rubro-negros, segundo os carabineros, a polícia local, promoveram a maior invasão de torcedores de um time brasileiro em jogos no Chile.
Os milhares que cruzaram os 4.600 quilômetros entre o Recife e Santiago, somados aos milhões que ficaram no Brasil, sabiam que naquele roteiro apenas a festa era item garantido, e que pouco permitia grandes ilusões em campo. Passar pelo Grupo 1 seria dureza, talvez do tamanho da conquista que credenciou o clube a retornar à Libertadores, afinal, na Copa do Brasil 2008, o Sport bateu Palmeiras, Internacional, Vasco e Corinthians. No chamado ‘grupo da morte’, os adversários seriam três ex campeões da Libertadores, o Colo-Colo (1991), o Palmeiras (1999) e a LDU (2008).
O estádio Monumental David Arellano, emoldurado pela Cordilheira ao fundo, estava lotado. No início, a voz dos dois mil rubro-negros foi abafada por 43 mil hinchas. Mas o volume foi se invertendo ao passo dos surpreendentes acontecimentos em campo.
Um primeiro tempo de almanaque do time comandado por Nelsinho Baptista. Marcação eficiente e ataque cirúrgico, com Ciro, a joia do time na época, que abriu o placar e ainda deu uma assistência para Wilson. Dois a zero. E foi pouco. Na etapa final, o argentino Lucas Barrios, então estrela do Colo-Colo, diminuiria, mas o time chileno não evitou a primeira derrota em casa pela Libertadores da América.
Aquele 18 de fevereiro de 2009 já teria elementos suficientes para grudar nas retinas e na memória afetiva da torcida do Sport. Mas uma defesa pediu licença e, por mérito, também entrou para a história do jogo, do clube e, porque não, da competição.
O placar estava 2 a 1. A pressão chilena era do tamanho dos Andes. O cronômetro do árbitro argentino Saúl Laverni marcava exatamente 26 minutos e 51 segundos do 2º tempo quando o conterrâneo do juiz, o meia Carranza, ajeitou o corpo e mandou de esquerda. A bola branca da 50ª edição da Libertadores viajou vinte e cinco metros dando voltas em torno de si. O endereço estava desenhado na trajetória retilínea do potente chute do camisa 11 do Colo Colo. Ela estufaria a rede na baliza colada aos fanáticos da Garra Branca, a principal uniformizada do time chileno.
Mas o trajeto da bola foi interrompido por uma mão direita. A mão de Alessandro Beti Rosa, o paulista que se apaixonou por futebol ao acompanhar o pai dono de um bar dentro do estádio do Morumbi. Fez o destino a artimanha de tornar o filho mais velho de Seu Félix - nome de goleiro campeão do mundo -, um jogador que figuraria na escalação histórica de um dos mais tradicionais clubes do país.
O apelido leva o mesmo M de Manga, arqueiro do Sport no fim dos anos de 1950 e considerado por muitos o maior goleiro brasileiro da história. Mas Manga não permaneceu na Ilha do Retiro o suficiente para disputar vaga com Magrão no hall dos 11 eternos do Sport. O currículo de Magrão o torna incomparável: seis títulos, sendo uma Copa do Brasil, quase 500 partidas com o mesmo escudo ao peito. Magrão das conquistas, dos números, mas, principalmente, das defesas inacreditáveis, como aquela no Estádio Monumental que garantiu a vitória do Sport (que terminaria líder do ‘grupo da morte’).
O relógio marcava meia-noite.
Na madrugada do dia 19, ao retornar para o Intercontinental, cruzei com Magrão. Dei os parabéns pela defesa, pela vitória, e voltei ao assunto do quarto que me martelou por longas doze horas.
- Olha, seguindo o seu raciocínio, o Corinthians deveria se chamar Paulista, porque é Sport Club Corinthians Paulista. Então, Magrão, passe a chamar o seu Corinthians de Paulista, por favor.
Brinquei com o goleiro que torcia pelo Timão na infância. Mas Magrão não estava disposto a perder nada naquela noite, nem jogo, nem piada.
- O meu Corinthians, não. O meu Sport.
E a porta do elevador se fechou.
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(Texto originalmente publicado como prefácio do livro 'Copa do Brasil 2008 - Há 5 anos o Brasil era rubro-negro' - BB Editora 2013)