domingo, 20 de março de 2016

Uma manhã (inesquecível) com Pepe Mujica

bolacha estava na mão esquerda, a faca com o queijo danbo - uma das delícias uruguaias, na direita. Antes do encontro entre as duas, um sinal de e-mail no celular.
Abocanhei metade, e antes que pudesse continuar a prosa em que ouvíamos eu e o produtor Chico Trigo parte das muitas aventuras dos tempos de Globo Repórter e de Fantástico do repórter cinematográfico Julinho Aguiar, abri a caixa de entrada.
‘Estimado Sr. Gallindo podrá llegar a las 11 al Parlamento’
Assim, curta, sem pontuação, a secretária parlamentar María Maracapili nos avisava que a entrevista com o hoje senador e ex presidente do Uruguai, Pepe Mujica, enfim, estava confirmada.
Nem pudemos comemorar.
A mensagem foi enviada às 10h22 da quinta-feira, 10 de março de 2016. Tínhamos pouco mais de meia hora para chegar.
Bolacha incompleta no prato, suco de laranja a meio-copo, doce de leite Lapataia intocado. Os três largamos o rango e o papo pra trás, nos metemos no Renault Clio alugado em direção ao Palácio Legislativo.
Quinze minutos entre o hotel e o prédio de 90 anos, o mais imponente que vimos na capital do Uruguai. Uma construção monocromática: o cinza domina as colunas e janelões da fachada. Dentro, uma mistura da madeira, mármore e ouro.
Estacionamos com facilidade na vaga de imprensa.
10h58.
Uma caminhada sob chuva até a entrada destinada aos jornalistas. Detector de metal, crachá de identificação, elevador, três ou quatro corredores até o gabinete no 3º andar.
11h08.
- Sem problema.
María nos tranquilizou com um sorriso.
- Podem se arrumar aí que o senador está falando para o programa de rádio e logo virá atendê-los.
Quando sugerimos ao Esporte Espetacular contar a história de Luis Suárez, pensei desde o início ouvir José Mujica. Apaixonado por futebol, o ex presidente fez declarações febris em defesa do atacante após a punição da FIFA pela mordida no italiano Chiellini na Copa de 2014.
Se o Uruguai tem 2 ícones mundiais, eles são o camisa 9 do Barcelona - que tem números melhores que Messi e Neymar na temporada 2015/2016 - e o ex presidente do país.

Fruto não apenas dos projetos que Mujica propôs e aprovou em seu mandato, como a descriminalização do aborto, a ampliação dos direitos civis dos homossexuais e a legalização da maconha, mas especialmente pela vida franciscana que leva.
Mesmo quando era a maior autoridade do país, Mujica vivia somente com parte do salário, o equivalente a 3 mil reais (doava 70% restantes ao seu partido, a Frente Ampla). Ainda hoje, só anda num Fusca azul – modelo 1987, e mora num sítio com a mulher, a ex-militante Lucía Topolansky, e Manuela, uma cadelinha de 3 patas.
Simples e disponível. A articulação para a entrevista começou por celular com Lucía, em 29 de fevereiro, e seguiu por e-mail com a assessora, María. Foram apenas 4 correios trocados até o último que interrompeu nosso café-da-manhã.
- Vocês precisam ser rápidos, o senador está cansado, hoje.
María nos adiantou ao oferecer uma sala do gabinete como cenário da entrevista.
Uma sala miúda, zero luxo; alguns livros, muitos papeis, uma cuia de chimarrão e um enorme birô - que foi afastado para Julinho poder montar a iluminação adequada.
Mujica entrou em passo ligeiro e reforçou que estava apressado, enquanto eu punha o microfone na lapela do terno azul-marinho com riscado xadrez.
- Vocês são jovens. Eu tenho 80 anos, então, a essa altura, todo o tempo que eu tiver disponível para respirar, devo aproveitar sem desperdício.
Mujica, talvez pela idade, tem voz pausada. Mas não precisa de arroubos de volume para causar impacto em seu interlocutor. O conteúdo já basta.
Os quinze minutos previstos se transformaram em uma hora.
- Suárez é genial com os tornozelos, não precisa ser com a cabeça.

- Esses senhores importantes da FIFA, nenhum passou fome.

- O Brasil foi a pior vítima da Copa do Mundo.

- Eu gostaria de ir ao Recife (ver Brasil e Uruguai pelas Eliminatórias). Mas depois eu vou, e perdem, e vão pensar que sou eu o culpado.

- Quando eu era jovem joguei futebol, depois virei ciclista. E só depois me dediquei a mudar o mundo e isso é outra história.

Com câmera desligada, a resenha entrou em outros campos. Mujica lembrou de seus tempos de Tupamaro, o movimento de libertação nacional contra a ditadura uruguaia, que acabou o levando à prisão por 15 anos.

- Várias vezes durante a ditadura fui a Porto Alegre levar e trazer correspondência para Jango, Brizola e muitos outros que passaram períodos no Uruguai.

O passado virou presente na prosa sobre o Brasil. Mujica pôs as mãos sobre o meu e o ombro do amigo Chico e mandou uma piada escancarada. 

- O que acontece é que o Brasil é imenso, há muito pra roubar. Aqui como é menor, todos se entendem e vivem bem.

Depois, falou sério, sem piscar.

- Não me conformo que apareça agora, no Brasil, jovem pedindo volta da ditadura. É uma coisa de louco, de tapado, eles não sabem o que é uma ditadura, não tem nem ideia. Qualquer democracia por pior que seja é melhor que uma ditadura. Nas ditaduras não há garantia para nada.

Antes de seguir o próximo compromisso da agenda, o velho uruguaio voltou ao futebol.

- Só espero que a riqueza não mude a cabeça de Luisito, hein? Que Suárez não se transforme num Senhor, que volte pra cá ainda como um moleque de bairro. 

Para Mujica e seus conterrâneos, o Uruguai não está em busca de ídolos impecáveis, sábios, donos da lei; eles estarão sempre interessados em festejar os heróis imperfeitos.

- Un abrazo a Brasil.


-----

A quem interessar possa...
Há inúmeros livros sobre a trajetória do ex presidente do Uruguai. Os mais conhecidos são ‘Simplesmente Mujica’, ‘A Revolução Tranquila’ e ‘Una Oveja Negra al Poder’.
O link da reportagem exibida no Esporte Espetacular sobre a vida de Suárez:
http://globoplay.globo.com/v/4897551/