sexta-feira, 29 de julho de 2016

Quando um ‘Oxente’ me ajudou a falar com Pelé

Eu já havia entrevistado Pelé.

A primeira vez foi num sábado, 30 de abril de 2011. Pelé tinha ido ao Recife receber uma homenagem do festival de cinema de Pernambuco, o Cine PE. Poucos sabiam – e ainda sabem – que o Rei do Futebol participou como ator de 18 filmes, vários sem nenhuma relação com o futebol.

Se eu já estava ansioso para encontrá-lo, Pelé contribuiu ainda mais para isso. A nossa equipe tomou um chá de cadeira de duas horas e tanto no mezanino no hotel onde Pelé estava hospedado, na praia de Boa Viagem.

Vacilo mútuo das produções do festival e do ex-jogador em agendar a entrevista para às 4 da tarde daquele sábado. Mesmíssimo horário da semifinal do Campeonato Paulista entre Santos e São Paulo.

Lógico que o Rei só foi nos atender após assistir ao baile de Neymar e Ganso sobre o tricolor que garantiu o Santos na final do Paulistão 2011.  Parte do papo com o ‘ator’ Pelé está nesta reportagem que fizemos para o Jornal Nacional (https://globoplay.globo.com/v/1503109/).



Mas quero aqui contar sobre quando entrevistei Pelé pela segunda vez.

Era março de 2014. Tinha ido com os jornalistas Rafael Pirrho e Rodrigo Lisbôa fazer uma série de reportagens em dois países africanos que iam disputar a Copa do Mundo no Brasil: Camarões e Argélia.

A Argélia foi nosso primeiro destino. Na quarta-feira, dia 5, à tarde, fomos cobrir o amistoso entre a seleção argelina e a Eslovênia. Sabíamos que Pelé daria o ponta-pé inicial, mas não tínhamos nenhuma confirmação de que poderíamos ou conseguiríamos entrevistá-lo.  

Deixamos pra trás a capital Argel, dando de costas para o Mar Mediterrâneo, e partimos ao Sul em direção à cidade de Blida, local do jogo. Cinquenta minutos depois, estávamos no estádio Mustapha Tchaker.

Difícil enumerar as impressões marcantes daquele dia: um estádio tomado por homens – apenas poucas mulheres, casadas, frequentam lugares públicos na Argélia, herança da tradição muçulmana no país; torcedores deixando a arquibancada durante o jogo para rezar em direção a Meca; e a veneração a um senhor brasileiro, ali com 74 anos.

Já havia visto, ouvido, lido reportagens sobre a dimensão da imagem de Pelé fora do Brasil. Mas testemunhar o fanatismo de dezenas de milhares de argelinos, quase a totalidade nunca viu Pelé jogar, foi uma experiência impactante.

A missão do dia – e obrigação de repórter - era ouvir Pelé sobre a recepção dos argelinos.

Só que havia dezenas de repórteres ao nosso lado, e outra incontável quantidade de seguranças. Depois que Pelé deu o ponta-pé, veio caminhando para fora do gramado. Eu era mais um na pequena multidão que tentaria ouvir o Rei do Futebol. Isso se ele falasse. Se ele parasse.

- Pelê, Pelé, Pe-lé...

Se todos o chamavam do mesmo jeito, apenas com variações de idiomas, e o barulho da arquibancada seguia, como eu poderia chamar atenção?

Lembrei-me ali de um outro episódio. Madri, 2007. Eu estava na Cidade Deportiva, o CT do Real Madrid. A porta de saída do prédio para o estacionamento funciona em alguns dias como zona mista e os repórteres tentam ali tirar algumas palavras dos jogadores. A grande maioria nem para. E assim foi com Beckham, Robben, Higuaín, Ronaldo, Roberto Carlos, Cannavaro. Passando e deixando microfones no vácuo. Eu não estava ali esperando pelos galácticos. Claro, seria ótimo se eles parassem. Mas a minha pauta era para uma série do Esporte Espetacular sobre os nordestinos no futebol europeu. Eu estava ali para ouvir Pepe, um alagoano que havia chegado há poucos meses no clube espanhol.

Pensei: como não ser ignorado e fazer Pepe ao menos olhar para mim.

Matutei.

Pronto.

Eu vou chamá-lo de um jeito diferente do qual fariam os outros jornalistas.

- Pepe, Pepe, Pepe, Pepe...

Repórteres em uníssono. Ele baixou a cabeça, apressou o passo. Ia se bandear para o estacionamento. Foi quando eu mandei dando uma tonelada de peso ao meu sotaque nordestino:

- Benedito Bentes! Olha o cabra de Benedito Bentes!

Parou. Virou o pescoço noventa graus à esquerda. Deve ter pensado: quem é o maluco que tá gritando o nome do bairro onde eu nasci, em Maceió?

Eu! Já estava com os dois braços levantados.

Abriu o sorriso. E veio perto na grande em nossa direção. Ali, me apresentei e pude marcar, cara a cara, a longa entrevista que faria com zagueiro no dia seguinte. Pepe naquela época não tinha assessor de imprensa no Brasil, em Portugal, e nem na Espanha. E se dependesse da assessoria do clube, ele só falaria em entrevista coletiva, dali a algumas semanas.

Usei estratégia semelhante agora em janeiro de 2016. Em frente ao hotel oficial do Bola de Ouro da FIFA, em Zurique, na Suíça, havia algumas dúzias torcedores. Quando Kaká, que ia entregar o Troféu ao vencedor, chegou, os berros foram a altíssimos decibéis. Me embrenhei entre os torcedores eufóricos e gritei:

- João Ramalho! João Ramalho! Uma palavrinha a pedido de João Ramalho!

Kaká identificou o nome familiar em meio aos gritos e olhou em minha direção, microfone na mão. Gargalhou e me atendeu.

João Ramalho é há anos produtor da seleção brasileira pela TV Globo e criou intimidade com vários atletas, entre eles, e especialmente, Kaká.

Após os parênteses em Madrid e Zurique, voltamos para Argel, naquela quarta-feira de 2014.

- Pelê, Pelé, Pe-lé...

Todos chamavam, junto com frases em árabe. Os seguranças, a passos apressados, o cercavam.

Abri a goela mais alto que os árabes.

- Oxente! Brasil! Amigo! Aqui! Por favor! Eu!

Pelé parou. Não acreditei.

- Claro que você fala com a gente, Rei!

Esticou a mão ‘furando’ o cordão de braços dos seguranças.

Puta que pariu! Deu certo!

Duas, três perguntas. Respostas sorridentes, um tapinha no ombro. E Pelé seguiu são e seguro para a Tribuna de Honra.

E eu voltei pro meu canto, feliz de orelha a orelha, sendo eternamente grato ao meu ‘oxente’.


segunda-feira, 20 de junho de 2016

Um país sem gelo

Em Paris, dezoito horas. 

Dezoito e nove, pra ser chato. Foi quando o Boeing 777-300 taxiou e levantou voo no Aeroporto Charles de Gaulle. Era tardinha, mas, do alto, foi possível testemunhar umas das imagens mais exuberantes do mundo: as luzes de Paris. Voilà. 

Aquilo ficou na retina enquanto o Air France ‘descia’ pelo mapa da Europa, cruzava o Saara e rumava ao oeste do continente africano. Pouco menos de seis horas depois, o comandante anunciou que iríamos pousar. Eu estava na janela, mas não conseguia enxergar absolutamente nada do nosso destino. E não era minha miopia dando sinais de piora.

Às 23h35, hora local, pousamos em Douala. 

Um desembarque sem finger, nem ônibus. Caminhamos na pista em direção a um prédio amarelo, de dois ou três andares, e alguns lances de escada acima. Me lembrei do Recife. O Recife dos Anos 80. Da rodoviária no cais. Um caos. 

A escuridão na pista e o terminal antigo e simplório não eram todo cartão de visitas. Assim que passamos pela alfândega, nos deparamos com uma face crua e nua do país onde passaríamos os próximos nove dias.

Dezenas de pessoas disputando quem levava nossas bagagens. No susto, preferimos carregá-las nós mesmos. Logo atrás, um som incomum, que se espalhava tipo traque de massa ao tocar o chão. Eram chicotadas. Para afastar dois rapazes que tentavam carregar malas de outro passageiro, o policial camaronês se valeu de um chicote. Bem-vindos.

O som seguiu ecoando nos ouvidos enquanto seguíamos para o hotel. Aquilo que eu não via do alto no avião durante a aterrissagem, pouco consegui enxergar de baixo também. No caminho de alguns minutos, a noite na maior cidade de Camarões era uma penumbra só. Raros postes com fracas lâmpadas amarelas. Descobriríamos assim que aquela era cena comum. Camarões vive em permanente racionamento. Não há uma hidrelétrica no país. A pouca energia vem da vizinha Nigéria.

Os jogos do campeonato camaronês de futebol, por exemplo, são diurnos. Em vários estádios não há nem refletores.

A carência de energia se escancara na hora de matar a sede. Geladeiras e freezers apenas conservam. A tensão elétrica baixa consegue somente esfriar as bebidas. Whisky? Só cowboy. 

Estávamos num país sem gelo.

De Paris para Douala, da luz à escuridão: 6 horas. A distância entre colônia e metrópole. E Camarões teve muitas. Além da França, Grã-Bretanha, Portugal e Alemanha tiveram seu momento de controle e exploração, principalmente do petróleo e do calcário. Após a Primeira Guerra, franceses - na maior parte do território - e britânicos dividiriam o país. A independência de direito tem pouco mais de 50 anos. A independência de fato ainda é ilusão.

Ficou de herança uma nação pré-industrial. Alguma pecuária e muita agricultura. De Douala a Yaoundé, a capital - onde fomos entrevistar Roger Millá, o Pelé camaronês - mercados de frutas se multiplicam ao longo dos 240 quilômetros. Melancia, abacaxi, banana, cogumelo, cana de açúcar dividiam espaço com carne de roedores, galinha e até morcegos expostos na beira da estrada. 

Os dias em Camarões foram de testemunho da precariedade permanente. Era como visitar o sertão nordestino de trinta anos atrás. Piorado. Tá lá no IDH, da ONU: posição 153 no ranking de Desenvolvimento Humano. Expectativa de vida: 53 anos.

Seria cômodo e preguiçoso levar de lá apenas essa radiografia de um país e definir um continente a partir dela. Mas o produtor e amigo Rafael Pirrho, que já foi correspondente na África do Sul, nos alertou a mim e ao repórter cinematográfico Rodrigo Lisboa antes mesmo de irmos gravar histórias em países africanos que disputariam a Copa do Mundo no Brasil:

- Cuidado com a única história.

Foi como se as palavras nos pusessem olhos de peixe sobre a córnea. África não é UM país. São cinquenta e quatro. Sim, há pobreza na maioria. Sim, há lindas paisagens, há os safáris e seus animais selvagens. Mas há uma diversidade proporcional aos trinta milhões de quilômetros quadrados do continente

Onde cabem desde democracias plenas a ditaduras absolutistas, de nações cristãs a muçulmanas. E, não se surpreenda de passar dez dias em um país e não ver um negro sequer. Foi o que aconteceu conosco na Argélia, por exemplo. 

Correr do estereótipo, ou da 'história definitiva', como sugere a romancista nigeriana Chimamanda Adichie, não significa também cegar a uma realidade objetiva. Ao ocidente não cabe se interessar pela África apenas quando surgem notícias de que uma ¨epidemia pode se espalhar pelo mundo¨. 

A tão atual questão dos refugiados, por exemplo. Mais de 500 mil africanos tentaram se refugiar na Europa, em 2015, segundo as Nações Unidas. O que milhares encontraram? Fronteiras bloqueadas e dirigentes 'lavando as mãos'. 

Alto lá. Nesse caso, cabe o reducionismo da culpa. É que olhando pra trás, folheando a história, só é possível chegar a uma conclusão: os antigos colonizadores tem que pagar essa conta. A começar pela de luz.



domingo, 20 de março de 2016

Uma manhã (inesquecível) com Pepe Mujica

bolacha estava na mão esquerda, a faca com o queijo danbo - uma das delícias uruguaias, na direita. Antes do encontro entre as duas, um sinal de e-mail no celular.
Abocanhei metade, e antes que pudesse continuar a prosa em que ouvíamos eu e o produtor Chico Trigo parte das muitas aventuras dos tempos de Globo Repórter e de Fantástico do repórter cinematográfico Julinho Aguiar, abri a caixa de entrada.
‘Estimado Sr. Gallindo podrá llegar a las 11 al Parlamento’
Assim, curta, sem pontuação, a secretária parlamentar María Maracapili nos avisava que a entrevista com o hoje senador e ex presidente do Uruguai, Pepe Mujica, enfim, estava confirmada.
Nem pudemos comemorar.
A mensagem foi enviada às 10h22 da quinta-feira, 10 de março de 2016. Tínhamos pouco mais de meia hora para chegar.
Bolacha incompleta no prato, suco de laranja a meio-copo, doce de leite Lapataia intocado. Os três largamos o rango e o papo pra trás, nos metemos no Renault Clio alugado em direção ao Palácio Legislativo.
Quinze minutos entre o hotel e o prédio de 90 anos, o mais imponente que vimos na capital do Uruguai. Uma construção monocromática: o cinza domina as colunas e janelões da fachada. Dentro, uma mistura da madeira, mármore e ouro.
Estacionamos com facilidade na vaga de imprensa.
10h58.
Uma caminhada sob chuva até a entrada destinada aos jornalistas. Detector de metal, crachá de identificação, elevador, três ou quatro corredores até o gabinete no 3º andar.
11h08.
- Sem problema.
María nos tranquilizou com um sorriso.
- Podem se arrumar aí que o senador está falando para o programa de rádio e logo virá atendê-los.
Quando sugerimos ao Esporte Espetacular contar a história de Luis Suárez, pensei desde o início ouvir José Mujica. Apaixonado por futebol, o ex presidente fez declarações febris em defesa do atacante após a punição da FIFA pela mordida no italiano Chiellini na Copa de 2014.
Se o Uruguai tem 2 ícones mundiais, eles são o camisa 9 do Barcelona - que tem números melhores que Messi e Neymar na temporada 2015/2016 - e o ex presidente do país.

Fruto não apenas dos projetos que Mujica propôs e aprovou em seu mandato, como a descriminalização do aborto, a ampliação dos direitos civis dos homossexuais e a legalização da maconha, mas especialmente pela vida franciscana que leva.
Mesmo quando era a maior autoridade do país, Mujica vivia somente com parte do salário, o equivalente a 3 mil reais (doava 70% restantes ao seu partido, a Frente Ampla). Ainda hoje, só anda num Fusca azul – modelo 1987, e mora num sítio com a mulher, a ex-militante Lucía Topolansky, e Manuela, uma cadelinha de 3 patas.
Simples e disponível. A articulação para a entrevista começou por celular com Lucía, em 29 de fevereiro, e seguiu por e-mail com a assessora, María. Foram apenas 4 correios trocados até o último que interrompeu nosso café-da-manhã.
- Vocês precisam ser rápidos, o senador está cansado, hoje.
María nos adiantou ao oferecer uma sala do gabinete como cenário da entrevista.
Uma sala miúda, zero luxo; alguns livros, muitos papeis, uma cuia de chimarrão e um enorme birô - que foi afastado para Julinho poder montar a iluminação adequada.
Mujica entrou em passo ligeiro e reforçou que estava apressado, enquanto eu punha o microfone na lapela do terno azul-marinho com riscado xadrez.
- Vocês são jovens. Eu tenho 80 anos, então, a essa altura, todo o tempo que eu tiver disponível para respirar, devo aproveitar sem desperdício.
Mujica, talvez pela idade, tem voz pausada. Mas não precisa de arroubos de volume para causar impacto em seu interlocutor. O conteúdo já basta.
Os quinze minutos previstos se transformaram em uma hora.
- Suárez é genial com os tornozelos, não precisa ser com a cabeça.

- Esses senhores importantes da FIFA, nenhum passou fome.

- O Brasil foi a pior vítima da Copa do Mundo.

- Eu gostaria de ir ao Recife (ver Brasil e Uruguai pelas Eliminatórias). Mas depois eu vou, e perdem, e vão pensar que sou eu o culpado.

- Quando eu era jovem joguei futebol, depois virei ciclista. E só depois me dediquei a mudar o mundo e isso é outra história.

Com câmera desligada, a resenha entrou em outros campos. Mujica lembrou de seus tempos de Tupamaro, o movimento de libertação nacional contra a ditadura uruguaia, que acabou o levando à prisão por 15 anos.

- Várias vezes durante a ditadura fui a Porto Alegre levar e trazer correspondência para Jango, Brizola e muitos outros que passaram períodos no Uruguai.

O passado virou presente na prosa sobre o Brasil. Mujica pôs as mãos sobre o meu e o ombro do amigo Chico e mandou uma piada escancarada. 

- O que acontece é que o Brasil é imenso, há muito pra roubar. Aqui como é menor, todos se entendem e vivem bem.

Depois, falou sério, sem piscar.

- Não me conformo que apareça agora, no Brasil, jovem pedindo volta da ditadura. É uma coisa de louco, de tapado, eles não sabem o que é uma ditadura, não tem nem ideia. Qualquer democracia por pior que seja é melhor que uma ditadura. Nas ditaduras não há garantia para nada.

Antes de seguir o próximo compromisso da agenda, o velho uruguaio voltou ao futebol.

- Só espero que a riqueza não mude a cabeça de Luisito, hein? Que Suárez não se transforme num Senhor, que volte pra cá ainda como um moleque de bairro. 

Para Mujica e seus conterrâneos, o Uruguai não está em busca de ídolos impecáveis, sábios, donos da lei; eles estarão sempre interessados em festejar os heróis imperfeitos.

- Un abrazo a Brasil.


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A quem interessar possa...
Há inúmeros livros sobre a trajetória do ex presidente do Uruguai. Os mais conhecidos são ‘Simplesmente Mujica’, ‘A Revolução Tranquila’ e ‘Una Oveja Negra al Poder’.
O link da reportagem exibida no Esporte Espetacular sobre a vida de Suárez:
http://globoplay.globo.com/v/4897551/