terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Gasping

Em 2019 eu aprendi essa palavra. Estava num quarto de hospital quando a médica observou mainha e disse que ela ainda não havia entrado em gasping.

“O que é isso?”

“Quando começam as respirações finais.”

Já sabíamos que não haveria tratamento capaz de curá-la, nem de prolongar sua vida após nove meses de um diagnóstico que fez abrir um abismo sob os nossos pés. 

Dona Alda, fortaleza desde sempre, ainda mais na arte de preservar os filhos, desde o finzinho de 2018 tentava tocar a rotina e as ‘novidades’. Festejava a reunião de tanta gente em seu entorno. 

Assim, juntos, vivemos diagnóstico, cirurgia, UTI, recuperação, volta pra casa, o cotidiano de novas limitações, o tratamento e suas implicações, a eterna esperança, a serenidade, a volta de sintomas, da doença, sua partida. 

Domingo, 15 de setembro, às 14h35. Gasping

Até essa data, fomos apresentados a outros termos de um doloroso vocabulário: adenocarcinoma, infusor, prognóstico reservado, ciclo...

Duplamente. 

Porque painho, nesses inexplicáveis acontecimentos, foi diagnosticado com o mesmo tumor, em estágio ainda mais avançado.

Domingo, 27 de outubro, às 3h. 
Gasping.

Quarenta e dois dias entre um e outro. 
E outras tantas repetições nos rituais de despedida. Dor sobre dor  sobre dor...

Dois mil e dezenove. Como esquecê-lo? O mais triste. O mais doído dos anos. 

Não quero guardá-lo com rancor. Porque, ao mesmo tempo em que eu e meus irmãos sofremos as maiores perdas de nossas vidas, chegamos até aqui, no fim do ano, ainda com equilíbrio, por incontáveis demonstrações de afeto, de parentes, amigos, colegas de trabalho, até de desconhecidos. Mãos, braços e abraços estendidos. Que enxugaram nossas lágrimas, que nos puseram no colo, que nos deixaram de pé. 

Espero que chegue logo aquele dia que todos falam em que só ficarão as boas lembranças. As que vão acarinhar a saudade do peito e fazer olhar pra frente com o amor e a doçura de Alda, a leveza e o otimismo de Ivo.

Mainha e painho, vocês não ficam em 2019. Vocês seguirão com a gente por todos os dias que virão até o último suspiro, nosso gasping, seja lá quando for.

Com profundo amor, teu caçula.

sábado, 14 de setembro de 2019

O travesseiro branco

Istambul, 5 de maio de 2013.

O travesseiro branco

A palavra ‘encardido’ aprendi com Dedei. 
Ora, claro, coisa mais óbvia, só ela poderia, obsessiva por limpeza, ensinar a um menino com menos de dois anos de idade que algo estava ‘encardido’.
E lá estava a tal palavra adicionada ao meu micro-dicionário infantil, que continha, entre outras coisas, os verbetes: Mainha, Painho, Riquinho, Ivinho, fatia parida e encardido. Mérito de Dedei.
Além dessa palavra, Dedei me deu outras coisas. E não falo de meias ou cuecas. 
Nem falo do pano que cobre o bebedouro lá de casa, em bordado branco - nada encardido - onde, em cada gole, sem perceber, bebo um pouco Dedei.
Ela me deu amor. Assumiu com gosto a missão dada por Alda e Ivo de ser minha madrinha. Por trinta e seis anos, aquele par de olhos claros sempre, sempre, sempre me encarou com ternura.  
Olhos, aliás, míopes. Os óculos ajudaram Dedei a lidar com linhas e agulhas. 
Sabendo disso, resolvemos pregar uma peça. Em um tal abril de mil novecentos e oitenta e algo, eu e meus irmãos gritamos por Dedei. ‘Vem aqui que Ivinho tá com algo no pé!’. Ela veio, preocupada. Procurou, procurou, procurou de novo. Nada. ‘Não tá vendo, Dedei?’, ‘Não’, ‘Então, vai pegar os óculos’. E lá foi Francisca. Voltou e deu de cara com: nada. Foi quando, ao mesmo tempo, o trio desocupado de Alda gritou: ‘Primeiro de abril!’. 
‘Ah, miseráveis!!!’ 
Pois bem. A voz dela tá aqui no meu ouvido agora. A risada, sempre iniciada com um A, forte, acentuado, vem com frequência nesses dias em que a distância me impediu de dar um adeus.
E, de longe, reparei numa coisa. A manchete do Jornal do Commercio do dia 30 de abril foi ‘Sufoco e Alívio’. O jornal se referia à chuva que caiu no Estado deixando um sufoco no trânsito e trazendo alívio por amenizar a seca.
Pensando bem, essa aí também poderia ser a manchete de nossas vidas naquele mesmo dia de chuva forte: ‘Sufoco e Alívio’. Em nós, aquela sensação de vazio e impotência, da dor sem remédio. O sufoco da perda. E, ao mesmo tempo, sem pedir licença às lágrimas, o alívio pousou em nós. Aliviados por ver o fim do sofrimento.
Sei que, em breve, apenas as boas lembranças vão permanecer.
Buscarei por elas obsessivamente como Dedei buscaria um grão de areia no chão da sala.
Lembranças como o cheiro do travesseiro branco, levemente encardido, que ficava na cama da parede do quarto à esquerda da casa de número setenta e seis da Avenida Recife. Era a cama onde eu ganhava cafuné, massagem na mão e soneca de conchinha. 

Era a cama de Dedei.