quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

A árvore da Lagoa... ou sobre ser paraíba

Sou um privilegiado. Moro perto do trabalho. Quando em vez, vou a pé. São menos de quatro quilômetros. Em pisada preguiçosa, tiro em meia hora. Nesses dias, tenho demorado mais. É que o caminho tá lotado. Pais, mães, avôs, avós, pirralhada incontável, proles inteiras. Gente que a cada respiro saca um smartphone e faz selfie sem parar.

O que atrai a multidão é uma árvore de Natal montada sobre uma balsa que fica a boiar na Lagoa Rodrigo de Freitas. Há quase vinte anos é assim. Ao redor da Lagoa, nessa época, o trânsito fica mais lento. Já foi pior.
Há quem se irrite com o engarrafamento.

Há quem se revolte com o ‘nível’ dos frequentadores da Lagoa.
Tá lá no Google, ipsis litteris:

- Odeio essa arvore da lagoa!!!so traz paraiba!!!!!:((((
Vomita Theo.

- Ja deu dessa arvore da lagoa q é igual todo ano e por alguma razao q meu intelecto n compreende reune um bando de paraiba
Esbraveja Sofia.

- vsf essa arvore da lagoa !! esse monte de paraiba vindo p ca e fica infernal pra quem mora aqui na lagoa !!! BOTA NA ZONA NORTE
Berra Felipe.

Pelas fotos, são jovens bem alimentados, passaram pela adolescência faz pouco tempo. De quem eles herdaram tanto rancor?
Três anos no Rio me ensinaram. Paraíba não é apenas um dos estados da federação.

É substantivo. Todo nordestino é paraíba.
É adjetivo também.

- Que decoração paraíba! Tudo branco, um horror.
Comentou um letrado pai de família após visitar uma casa com decoração, para ele, de mau gosto.

Nas décadas de 50 e 60 as populações de Rio e de São Paulo praticamente dobraram. Os imigrantes nordestinos colaboraram para isso. A seca afugentou milhões do semiárido. Os grandes centros urbanos do Sudeste seriam a salvação.

Quem chegou não tinha formação. Restaram os salários mais baixos, o subemprego.

- Se é pedreiro, é paraíba
'Brincou' o sujeito numa mesa animada entre um sushi e outro.
- Impressionante, só tem porteiro e garçom paraíba.

Ouvi de uma atleta famosa, alva, de cabelos negros escorridos.
O xis da questão é outro. O preconceito geográfico, na verdade, esconde o principal: o preconceito de classes. É preconceito contra o pobre. E contra o que, supostamente, ele representa: ‘mal educação’, ‘feiura’, ‘breguice’, ‘preguiça’.  

Ou todo mundo que lota a Lagoa nasceu no Nordeste ou é filho de nordestino?
- Já fui chamado de paraíba. Mas nasci no Rio Grande do Sul.

Me contou aos risos João Carlos, o Joca, barraqueiro no posto 9, em Ipanema, na saída da Vinícius de Moraes.
Joca é negro.

Eu mais testemunhei do que fui propriamente vítima desse preconceito.
Talvez porque não ser ‘dessa classe C que invade a Lagoa’. Talvez por não ser porteiro. Talvez por não ser barraqueiro. Talvez por não ser negro. Talvez por não ser pobre.
Por isso, compartilho do desejo da amiga paraense Sabrina Rocha para o ano novo: “um 2015 com menos gente preconceituosa, babaca e mal-educada. Seria melhor do que ganhar a Mega Sena da Virada”.

Caros meninos das redes, caros eleitores de fascistas, caros terráqueos, em geral: ponham rapadura no coração. Mais doçura e menos ódio, por favor.
Vai por mim, fará bem pras artérias.

Ah, ainda dá tempo de tirar foto na árvore. Ela ficará boiando na Lagoa até 6 de janeiro. Se não der, paciência, no fim de ano tem de novo.
 
 

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

O dia em que entrevistei Eusébio

Já escrevi no twitter tempos atrás. Mas, aqui, em texto inteiro, dividirei com vocês a minha história com Eusébio.
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Era 28 de outubro de 2007. Eu e o cinegrafista Marcos Correa gravávamos no José Alvalade, estádio do Sporting, quando o telefone tocou.

Vasco, garçom do Restaurante Tia Matilde, informava, agitado:

- O Eusébio já está a vossa espera.

Sem atender a ligações em casa, o jeito de tentar uma entrevista com o ex jogador era indo aonde ele mais frequentava.

Dia sim, dia também, Eusébio ia tomar suas doses de 12 anos no Tia Matilde.

Almoçamos lá todos os dias, por uma semana, enquanto produzíamos uma série para o Esporte Espetacular.

Nada de Eusébio aparecer. O garçom acabou virando nosso informante, um produtor informal. Deu certo.

Quando, enfim, Eusébio apareceu, Vasco o convenceu a falar. Mas tínhamos que nos apressar.
Eu e Marquinhos interrompemos as gravações no José Alvalade e rumamos pro Tia Matilde. Não tínhamos GPS, nem Google Maps, Waze, essas coisas que salvam vidas.

Tensão pelas ruas de Lisboa. Quem tem boca vai ao Tia Matilde. Fomos perguntando a um e a outro quando os sinais fechavam. Num deles, uma van de pet shop ao nosso lado. Marquinhos baixou o vidro e mandou:

- Onde fica o Tia Matilde?

E o sujeito:

- Ora, basta me seguir.

Salvação. Antes de partir, quis saber, para agradecer:

- Como é seu nome?

- Ivo.

Vá entender. O anjo da guarda português tem o mesmo nome do meu pai.

Mesmo com a ajuda providencial, chegamos ao Tia Matilde 15 minutos depois do previsto.

- Olá, Eusébio, nos desculpe pelo atraso. É que...

Ele interrompeu minhas explicações, após um longo gole:

- Ah, se fosse o Pelé, será mesmo que o esperariam? Cá fiquei, mas tenho apenas 10 minutos pra vocês.

A luz bacana, o set ideal, ficaram pra trás. Marquinhos meteu o rec e lá fui para minha entrevista relâmpago.

Pelé x Maradona, Copa de 66, Otto Glória, Eusébio e o Benfica, Felipão na seleção de Portugal, CR7... daria tempo para todas as perguntas?

Vasco teve que repor o gelo, as doses e os pratos com queijo trasmontano e fatias de pata negra repetidas vezes.

Os assuntos deixavam Eusébio como nos tempos de gramado, à vontade. A entrevista durou uma hora e meia.

Por fim, demos a ele uma camisa da seleção brasileira, a 9 de Ronaldo.

Agradeceu, sorriu, e partiu, após gritar para Vasco: - A fatura é por minha conta!

Foi assim a minha história com o 'Pantera Negra', o 'King', o 'Pelé português', um dos maiores do futebol mundial.

Ah, a resposta de Eusébio para a clássica pergunta, quem foi melhor: Maradona ou Pelé, não nos favorece.

- Foi o argentino! Mas não Maradona. Melhor que os dois, asseguro, foi Alfredo Di Stéfano.


P.S. A camisa 9 da seleção, novinha em folha, ainda com etiqueta, era do amigo Tiago Medeiros. Presente da mulher, Clara. Ele só queria o autógrafo de Eusébio para por num quadro na parede de casa. Ficou sem a assinatura. E sem a camisa.