sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

O paninho de prato 

A chinela arrastada no piso despertava a casa antes mesmo da cantoria no galinheiro começar. Ainda abraçados ao lençol, remela nos olhos, eu, irmãos e primos íamos visualizando na mente os acontecimentos do lado de fora do quarto a partir dos ruídos.

A água batendo no alumínio da pia. Tia Balia tá na cozinha.

A raspada do fósforo na caixinha. Vai ligar o fogão.

O remelexo de colher no pote. Tá molhando o fubá.

A tampa deitando amortecida na panela. Eita, é cuscuz no pano de prato.

A partir daí era o cheiro quem nos informava, não mais o som.

Enquanto contávamos telhas sobre as ripas, hotelaria eventual das patativas do agreste daquela São Caetano dos anos 80 e 90, o aroma tinha caminho livre para incensar o ambiente da casa sem laje.

Era melhor se levantar. Junto com os primeiros raios que surgiam sobre o plástico transparente improvisado que fazia vez de clarabóia.

Lava o rosto, escova os dentes e chega à mesa de assento fofinho junto com o cuscuz fumaçando sob o pano de prato.

O desembrulhar daquele paninho era um evento, um acontecimento, o ápice daquele filme que nos despertara. Era como se houvesse uma trilha, uma ópera ao fundo, enquanto lentamente Tia Balia desatava o nó, baixava uma ponta do pano por vez e enfim surgia o tesouro tão desejado, amarelo ouro dezoito quilates, e, por obra do pano, lisinho que nem testa de botox. 

Pra completar, era despejado o queijo de manteiga derretido, que se embrenhava pelas brechas possíveis do cuscuz de Tia Balia. Aquilo era felicidade.

Quando nova, Balia foi professora de beabá de uma rama de miúdos e de adultos iletrados da cidade; depois, dona de banca na feira da rua Prefeito Caetano Gomes. Alpercata de couro, qualquer tamanho, era com Tia Balia. A dona do olho mais azul esverdeado das margens do Rio Ipojuca, do riso agudo, e do cuscuz no paninho que décadas depois faz salivar só de pensar.

Tia Balia é mais um exemplo da genética longeva das mulheres dos Ramos, a banda materna de nossa família. Nesta madrugada de 18 de fevereiro de 2022, ela descansou. Seis dias antes de completar 105 anos de existência.

Obrigado, Tia, por mais de século de amor e pelo cuscuz no paninho de prato.