quarta-feira, 4 de novembro de 2015

Na casa de Caetano. Ou A eterna peleja Pernambuco x Bahia

Maio de 2015, outono no Leblon. Uma chuvinha nada glacial antecipou o escurecer na tarde carioca. Naquela terça-feira os corpos mais sarados do Rio não desfilaram no Posto 12. 

Era essa a paisagem que se via do janelão do terceiro andar voltado para a Avenida Delfim Moreira, a beira-mar do Leblon.

‘Vista da porra.’ Não tirava da cabeça. 

Minha admiração foi interrompida pela assessora de imprensa:

- Podem sentar que os meninos já estão vindo.

Um dos ‘meninos’ tem 73 anos.

Estávamos na casa de Caetano Veloso, um quase-gênio brasileiro.

(Quase porque gênios da nossa música são apenas cinco, como me convenceu uma vez o paraense Bené Fonteles: ‘Noel, Gonzaga, Caymmi, Pixinguinha e Jobim são os pilares. Depois vieram os tijolos.’)

Íamos entrevistar o dono da casa e o filho dele, Tom, para uma reportagem do Esporte Espetacular. 

Montamos iluminação no meio da sala vinte por vinte, onde sobrava um sofá pra dez lugares - em que dormiam dois violões - e uma mesa tamanho-banquete. 

Uma estante cobria todo o pé-direito. Nela, poucos objetos e muitos livros. Em destaque o songbook de Jorge Ben. Sim, Ben, ainda sem o Jor.

No lado direito, duas caixas de som e uma vitrola. No esquerdo, duas cadeiras, outro sofá e só. 

Caetano e Tom chegaram, o papo rolou e foi massa. 

A história sobre a curiosa relação do artista baiano e seu filho com o meia Gérson, do Fluminense, com quem Tom havia jogado na categoria de base tricolor, você pode (re)ver aqui: 


Mas quero contar outros dedos de prosa que trocamos com a câmera desligada. 

- Caetano, adoro ‘Lisbela’.

Abre parênteses. 
'Lisbela' é composição de Caetano inspirada em poesia de José Almino. Foi originalmente gravada pelo Trio Forrozão para adaptação da obra de Osman Lins para o teatro, ganhou versão de Dominguinhos (linda!) e foi parar no filme 'Lisbela e o Prisioneiro', de Guel Arraes, na voz dos Los Hermanos. 
Fecha parênteses.

Caetano franziu a testa.

- Lisbela?

- Não foi você quem compôs?

Tom se meteu:

- Foi, mas ele esquece. Ele anda esquecendo tudo.

São pai e filho mas lembram dois irmãos loucos um pelo outro ignorando mais de meio século de diferença com alfinetadas mútuas.

O filho:

- Não gosto de ‘Sozinho’, é música de velho.

O pai:

- Ele é ‘petralha’. 

Sarrou Caetano entregando que Tom gostou quando manifestantes acamparam em frente ao prédio vizinho para protestar contra o ex governador Sérgio Cabral.

Os assuntos iam se atropelando...

Introduzi o futebol, polemizando:

- Caetano, mas como é que você, torcedor do Bahia, deixa seu filho torcer por um time do Rio?

Tom é flamenguista.

- Ah, mas não tenho isso não. Eu já na Bahia também gostava do Flamengo. Lá eu era Bahia e Flamengo.

- Em Pernambuco a gente não tem essa de torcer misto não. E minha filha, mesmo carioca, terá que torcer por um time do Recife.

Tom duvidou:

- Impossível. Só se ela ficar amarrada em casa e não for para a escola.

Caetano 'antropolizou':

- É, vocês de Pernambuco tem isso mesmo. Primeiro lá, segundo lá, terceiro lá e só depois se abrem pro mundo. Pra ver o que o mundo anda fazendo, claro, pior do que vocês. 

Gargalhadas.

Como jornalista, aproveitei a deixa:

- Que é isso, Caetano. Nós te amamos lá. Você é nosso número dois. Só perde pra Reginaldo Rossi.

Trocamos outros risos e um abraçaço. 

Até outra hora.