Era essa a paisagem que se via do janelão do terceiro andar voltado para a Avenida Delfim Moreira, a beira-mar do Leblon.
‘Vista da porra.’ Não tirava da cabeça.
Minha admiração foi interrompida pela assessora de imprensa:
- Podem sentar que os meninos já estão vindo.
Um dos ‘meninos’ tem 73 anos.
Estávamos na casa de Caetano Veloso, um quase-gênio brasileiro.
(Quase porque gênios da nossa música são apenas cinco, como me convenceu uma vez o paraense Bené Fonteles: ‘Noel, Gonzaga, Caymmi, Pixinguinha e Jobim são os pilares. Depois vieram os tijolos.’)
Íamos entrevistar o dono da casa e o filho dele, Tom, para uma reportagem do Esporte Espetacular.
Montamos iluminação no meio da sala vinte por vinte, onde sobrava um sofá pra dez lugares - em que dormiam dois violões - e uma mesa tamanho-banquete.
Uma estante cobria todo o pé-direito. Nela, poucos objetos e muitos livros. Em destaque o songbook de Jorge Ben. Sim, Ben, ainda sem o Jor.
No lado direito, duas caixas de som e uma vitrola. No esquerdo, duas cadeiras, outro sofá e só.
Caetano e Tom chegaram, o papo rolou e foi massa.
A história sobre a curiosa relação do artista baiano e seu filho com o meia Gérson, do Fluminense, com quem Tom havia jogado na categoria de base tricolor, você pode (re)ver aqui:
Mas quero contar outros dedos de prosa que trocamos com a câmera desligada.
- Caetano, adoro ‘Lisbela’.
Abre parênteses.
'Lisbela' é composição de Caetano inspirada em poesia de José Almino. Foi originalmente gravada pelo Trio Forrozão para adaptação da obra de Osman Lins para o teatro, ganhou versão de Dominguinhos (linda!) e foi parar no filme 'Lisbela e o Prisioneiro', de Guel Arraes, na voz dos Los Hermanos.
Fecha parênteses.
Caetano franziu a testa.
- Lisbela?
- Não foi você quem compôs?
Tom se meteu:
- Foi, mas ele esquece. Ele anda esquecendo tudo.
São pai e filho mas lembram dois irmãos loucos um pelo outro ignorando mais de meio século de diferença com alfinetadas mútuas.
O filho:
- Não gosto de ‘Sozinho’, é música de velho.
O pai:
- Ele é ‘petralha’.
Sarrou Caetano entregando que Tom gostou quando manifestantes acamparam em frente ao prédio vizinho para protestar contra o ex governador Sérgio Cabral.
Os assuntos iam se atropelando...
Introduzi o futebol, polemizando:
- Caetano, mas como é que você, torcedor do Bahia, deixa seu filho torcer por um time do Rio?
Tom é flamenguista.
- Ah, mas não tenho isso não. Eu já na Bahia também gostava do Flamengo. Lá eu era Bahia e Flamengo.
- Em Pernambuco a gente não tem essa de torcer misto não. E minha filha, mesmo carioca, terá que torcer por um time do Recife.
Tom duvidou:
- Impossível. Só se ela ficar amarrada em casa e não for para a escola.
Caetano 'antropolizou':
- É, vocês de Pernambuco tem isso mesmo. Primeiro lá, segundo lá, terceiro lá e só depois se abrem pro mundo. Pra ver o que o mundo anda fazendo, claro, pior do que vocês.
Gargalhadas.
Como jornalista, aproveitei a deixa:
- Que é isso, Caetano. Nós te amamos lá. Você é nosso número dois. Só perde pra Reginaldo Rossi.
Trocamos outros risos e um abraçaço.
Até outra hora.