segunda-feira, 20 de junho de 2016

Um país sem gelo

Em Paris, dezoito horas. 

Dezoito e nove, pra ser chato. Foi quando o Boeing 777-300 taxiou e levantou voo no Aeroporto Charles de Gaulle. Era tardinha, mas, do alto, foi possível testemunhar umas das imagens mais exuberantes do mundo: as luzes de Paris. Voilà. 

Aquilo ficou na retina enquanto o Air France ‘descia’ pelo mapa da Europa, cruzava o Saara e rumava ao oeste do continente africano. Pouco menos de seis horas depois, o comandante anunciou que iríamos pousar. Eu estava na janela, mas não conseguia enxergar absolutamente nada do nosso destino. E não era minha miopia dando sinais de piora.

Às 23h35, hora local, pousamos em Douala. 

Um desembarque sem finger, nem ônibus. Caminhamos na pista em direção a um prédio amarelo, de dois ou três andares, e alguns lances de escada acima. Me lembrei do Recife. O Recife dos Anos 80. Da rodoviária no cais. Um caos. 

A escuridão na pista e o terminal antigo e simplório não eram todo cartão de visitas. Assim que passamos pela alfândega, nos deparamos com uma face crua e nua do país onde passaríamos os próximos nove dias.

Dezenas de pessoas disputando quem levava nossas bagagens. No susto, preferimos carregá-las nós mesmos. Logo atrás, um som incomum, que se espalhava tipo traque de massa ao tocar o chão. Eram chicotadas. Para afastar dois rapazes que tentavam carregar malas de outro passageiro, o policial camaronês se valeu de um chicote. Bem-vindos.

O som seguiu ecoando nos ouvidos enquanto seguíamos para o hotel. Aquilo que eu não via do alto no avião durante a aterrissagem, pouco consegui enxergar de baixo também. No caminho de alguns minutos, a noite na maior cidade de Camarões era uma penumbra só. Raros postes com fracas lâmpadas amarelas. Descobriríamos assim que aquela era cena comum. Camarões vive em permanente racionamento. Não há uma hidrelétrica no país. A pouca energia vem da vizinha Nigéria.

Os jogos do campeonato camaronês de futebol, por exemplo, são diurnos. Em vários estádios não há nem refletores.

A carência de energia se escancara na hora de matar a sede. Geladeiras e freezers apenas conservam. A tensão elétrica baixa consegue somente esfriar as bebidas. Whisky? Só cowboy. 

Estávamos num país sem gelo.

De Paris para Douala, da luz à escuridão: 6 horas. A distância entre colônia e metrópole. E Camarões teve muitas. Além da França, Grã-Bretanha, Portugal e Alemanha tiveram seu momento de controle e exploração, principalmente do petróleo e do calcário. Após a Primeira Guerra, franceses - na maior parte do território - e britânicos dividiriam o país. A independência de direito tem pouco mais de 50 anos. A independência de fato ainda é ilusão.

Ficou de herança uma nação pré-industrial. Alguma pecuária e muita agricultura. De Douala a Yaoundé, a capital - onde fomos entrevistar Roger Millá, o Pelé camaronês - mercados de frutas se multiplicam ao longo dos 240 quilômetros. Melancia, abacaxi, banana, cogumelo, cana de açúcar dividiam espaço com carne de roedores, galinha e até morcegos expostos na beira da estrada. 

Os dias em Camarões foram de testemunho da precariedade permanente. Era como visitar o sertão nordestino de trinta anos atrás. Piorado. Tá lá no IDH, da ONU: posição 153 no ranking de Desenvolvimento Humano. Expectativa de vida: 53 anos.

Seria cômodo e preguiçoso levar de lá apenas essa radiografia de um país e definir um continente a partir dela. Mas o produtor e amigo Rafael Pirrho, que já foi correspondente na África do Sul, nos alertou a mim e ao repórter cinematográfico Rodrigo Lisboa antes mesmo de irmos gravar histórias em países africanos que disputariam a Copa do Mundo no Brasil:

- Cuidado com a única história.

Foi como se as palavras nos pusessem olhos de peixe sobre a córnea. África não é UM país. São cinquenta e quatro. Sim, há pobreza na maioria. Sim, há lindas paisagens, há os safáris e seus animais selvagens. Mas há uma diversidade proporcional aos trinta milhões de quilômetros quadrados do continente

Onde cabem desde democracias plenas a ditaduras absolutistas, de nações cristãs a muçulmanas. E, não se surpreenda de passar dez dias em um país e não ver um negro sequer. Foi o que aconteceu conosco na Argélia, por exemplo. 

Correr do estereótipo, ou da 'história definitiva', como sugere a romancista nigeriana Chimamanda Adichie, não significa também cegar a uma realidade objetiva. Ao ocidente não cabe se interessar pela África apenas quando surgem notícias de que uma ¨epidemia pode se espalhar pelo mundo¨. 

A tão atual questão dos refugiados, por exemplo. Mais de 500 mil africanos tentaram se refugiar na Europa, em 2015, segundo as Nações Unidas. O que milhares encontraram? Fronteiras bloqueadas e dirigentes 'lavando as mãos'. 

Alto lá. Nesse caso, cabe o reducionismo da culpa. É que olhando pra trás, folheando a história, só é possível chegar a uma conclusão: os antigos colonizadores tem que pagar essa conta. A começar pela de luz.



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